quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

akossakopkposapkokopsa


Cheio de dedos

Examine suas mãos. Coisas estranhas, não são? Nos pertencem e ao mesmo tempo não nos pertencem. Parecem ter vida e opiniões próprias. Quantas vezes você já surpreendeu suas mãos num gesto impensado, ou num lugar que você não planejara? Muitas vezes suas mãos parecem estar enfatizando o que você diz e na verdade podem estar contrariando você, acenando freneticamente para se fazerem ouvir. Como boas e eficientes empregadas, suas mãos fazem os serviços essenciais sem serem mandadas. Empurram os óculos para cima no nariz, coçam onde é preciso, etc. se você é atacado elas erguem-se em sua defesa, automaticamente. Mas há sempre a ameaça implícita de uma rebelião. Suas mãos têm – em suas mãos, por assim dizer – o poder de embaraçá-lo, deixando cair o copo no carpete ou pousando, distraidamente, em algum joelho comprometido. Nossos pés são regiões remotas e pouco conhecidas com as quais nenhuma intimidade é possível. Nossas mãos, ao contrário, participam ativamente do nosso dia-a-dia, são da família, nos dão banho. Mas nem assim nos sentimos perfeitamente à vontade com elas.

As mãos são capazes de feitos estonteantes. Existem pessoas que realmente batem à máquina com os dez dedos! As mãos tocam Liszt no piano. Pintam cenas de batalha em cabeça de alfinetes. Como você e eu jamais exploramos toda a potencialidade das nossas mãos – a coisa mais complicada que eu faço com as minhas é abotoar a camisa – elas fatalmente se revoltarão um dia. Nos pegarão pelo pescoço. Ou farão gestos obscenos para dois PMs e depois não moverão um dedo para nos salvar.

Idéia para uma historia de terror: um homem descobre que, enquanto dorme, suas mãos saem como duas grandes aranhas para aterrorizar a vizinhança. As mãos atacam gatos e cachorros, sobem por baixo dos lençóis de donzelas. Todas as manhãs o homem tem suas mãos sujas de terra, embora não tenha saído da cama. Traços de sangue sob as unhas. Penas de galinha entre os dedos. Até que é acordado no meio da noite e chamado à delegacia. Lá encontra suas mãos em cima de uma mesa. Algemadas.

Sir Isaac Newton disse que a existência do dedão era prova suficiente da existência de Deus. A civilização começou com o dedão opositor. A evolução mais importante de toda a história da espécie, batendo longe da invenção da roda, do transistor e da azeitona sem caroço, foi o desenvolvimento da junta giratória que permite ao dedão – o Pai de Todos – se opor aos outros dedos. No momento em que pôde juntar as pontas do dedão e do indicador com delicadeza e precisão, para segurar uma borboleta ou esmagar um piolho, o homem passou a integrar uma ordem mais alta de mamíferos. Começou a andar sobre as patas de trás para deixar as mãos livres. Pôde segurar o tacape com mais firmeza e tocá-lo na cabeça do próximo com mais técnica. Pôde começar a fazer coisas em vez de apenas descobri-las.

O que distingue o homem do primata não é, como você sempre pensou, a alma, ou a capacidade de cantar a quatro vozes. É o dedão. Sem o dedão o homem não teria uma história. Jamais teria desenvolvido qualquer técnica mais avançada do que o bolinho de barro. Ainda andaria de quatro sem desfrutar das maravilhas do mundo moderno, como a poluição, a bomba de nêutron e o baixo fender.

Idéia para uma história de ficção científica: todas as mãos do mundo fariam parte de uma conspiração secreta, desconhecida dos humanos. Sem sabermos, nossas mãos trocariam sinais numa linguagem indecifrável, seguindo ordens de uma entidade superior e tramando a eventual conquista do planeta.

Um dia todas as mãos da humanidade parariam. Se recusariam a funcionar por cinco minutos, com resultados desastrosos para pilotos de aeronaves aterrissando, cirurgiões em meio a operações e trapezistas. Depois desta greve simbólica, as mãos passariam a agir por conta própria e em pouco tempo nos dominariam, pois não podemos fazer nada sem elas. Descobriria-se depois que as mãos obedecem a um ser extragalático, o Dedão Cósmico, e...

Depois do dedão, o dedo mais importante é o indicador. É o dedo que se usa em algumas tarefas indispensáveis para a sobrevivência da sociedade como limpar o nariz, chamar o elevador e o garçom e disparar foguetes. Mas também é o dedo da acusação e da delação. Sua utilidade é indiscutível, mas seu caráter é duvidoso.

Pouco se sabe sobre o terceiro dedo. É, geralmente, o mais comprido de todos mas não tem nenhuma função específica. Os outros dedos o tratam com afetuosa condescendência, chamando-o de “Comprido”, “Magrão”, boa-vida, etc. Já o seu vizinho existe por uma razão. Deus criou o dedão para libertar o homem, mas criou o anular – o dedo do anel – para lembrar que a sua liberdade é limitada. Pelo casamento, por uma instituição ou por sua própria vaidade.

As nossas mãos, como ativas RPs, cuidam da nossa vida social. São as mãos que cumprimentam, que abanam de longe, que batem nas costas, que aplaudem. Coisa curiosa: as duas têm exatamente a mesma formação cultural, mas só uma sabe escrever. As mãos também são nossas primeiras armas. No amor, são as nossas forças avançadas, as que exploram o terreno, desativam as minas e amolecem as defesas antes do corpo entrar em ação. Quando um homem e uma mulher se amam, é porque as suas mãos já se amaram demais. O amor começa quando as mãos estão saciadas.

O corpo é uma antiga usina de transformação, uma indústria pesada. As mãos são pós-industriais.

Nos somos as nossas mãos. Cara e nome não querem dizer nada, o que nos identifica mesmo são as impressões digitais. A cara dos dedos.

O mindinho se chama o “articular” e existe para limpar a orelha e, em certos casos, estender o alcance da mão no teclado. Diferente do terceiro dedo, no entanto, o mindinho transforma em virtude a sua inutilidade. Assumiu a sua frivolidade. É um símbolo de delicadeza, hipocrisia, alienação – ou simples frescura – quando se mantém levantado, não importa o que os outros dedos estejam fazendo. Se em vez do dedão, tivéssemos desenvolvido um mindinho opositor, a história do mundo teria sido outra. Divertidiiiiiissima.

(Luis Fernando Veríssimo)

Nenhum comentário: